O Brasil e o mundo pararam diante das cenas violentas, estarrecedoras e quase inacreditáveis de uma mulher sendo estuprada na sala da cirurgia enquanto estava passando por uma cirurgia cesárea e seu bebê vinha ao mundo. Sedada, desacordada, dopada, vulnerável e totalmente indefesa nas mãos de um médico anestesista, homem, branco e jovem. Ele não se intimidou diante dos outros colegas que conduziam o procedimento cirúrgico, valendo-se do fino lençol fragilmente suspenso que separava a cena de horror e o nascimento de um bebê. Ela, violentada, não reagiu. Não havia possibilidade de reação. Em outro episódio de horror, no estado de Santa Catarina, uma juíza impediu a interrupção da gravidez de uma menina de 11 anos, vítima de estupro. A menina descobriu a gravidez quando estava com 22 semanas de gestação, sendo impedida de realizar o procedimento do aborto, foi afastada de sua família e levada para um abrigo. Mais revoltante ainda, foram os áudios da juíza que vieram a público, no qual ela tenta persuadir a criança a manter a gestação e, sobretudo, pela série de violências institucionais impostas à menina e a sua mãe. Antes o corpo de uma mulher adulta, outro o corpo de uma criança de 11 anos. Mulheres que perdem suas identidades para tornarem-se alvo de violência física, psicológica e institucional. Nos dois casos, há uma clara violação de direitos, amplamente assegurados no Brasil, mas que sequer foram levados em consideração. A partir dos anos 2000, o Brasil vem publicando um extenso arcabouço normativo e legal sobre o atendimento humanizado ao parto e ao abortamento e um desses atos normativos é a Lei Federal n° 11.108/2005, que ficou conhecida como “Lei do acompanhante”, que garante às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato. A lei do acompanhante, vigente desde 2005, não foi cumprida no caso do estupro durante a cirurgia cesárea. Para especialistas da atenção humanizada ao parto a primeira dúvida era: onde estava o acompanhante daquela mulher? Por que ela estava sozinha com os profissionais de saúde? Era protocolo daquele hospital? O médico proibiu o acompanhante? Quem proibiu? Quem sabe se o acompanhante estivesse ao seu lado, o estupro não teria acontecido com ela, e com tantas outras mulheres que sequer lembram do nascimento dos seus filhos, porque foram cruelmente sedadas até perderem os sentidos. No caso da criança, o Decreto Lei nº 2.848/40 em seu Art. 128 que dispõe sobre o aborto legal assegura o direito de crianças e mulheres estupradas quando afirma “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Mais recentemente, num terceiro caso, no ano de 2012, segundo Decisão do STF, o aborto também é permitido, quando há um diagnóstico de anencefalia do feto. A violação dos direitos das mulheres tem se tornado rotineiro em nosso país e a falta de acesso ao abortamento legal é uma delas. Esse tipo de negativa às mulheres e crianças por parte dos serviços e profissionais de saúde se enquadram na definição de violência obstétrica, que resumidamente é descrita como “a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres, através do tratamento desumanizado” – Lei n° 4.848 do Estado do Amazonas. Para ampliar o acesso aos serviços de saúde e cumprir as leis e normas vigentes, surgiu a Associação Humaniza Coletivo Feminista, movimento da sociedade civil organizada sem fins lucrativos, que tem como objetivo principal a erradicação da violência obstétrica, bem como a promoção da autonomia feminina. O Humaniza Coletivo continuará lutando contra a violência de gênero até a retirada da última mordaça, dando voz às vítimas! Sim, nossas vozes serão OUVIDAS e RESPEITADAS.
1- Rachel Geber Corrêa, bióloga, especialista em Gestão em Saúde, aluna do Programa de Pós Graduação da UEA da Saúde Coletiva, mãe, feminista, ativista pelos direitos sexuais e reprodutivos e membra da Associação Humaniza Coletivo Feminista.
2- Cleise Maria de Goes Martins, Enfermeira, especialista em Obstetrícia, especialista em Gestão de Políticas de Saúde Informadas por Evidências Sírio Libanês, foi aprimoranda do Hospital Sofia Feldman, Mestranda em Enfermagem em Saúde Pública da UEA, feminista, ativista pelos direitos sexuais e reprodutivos e Membra da Diretoria do Humaniza Coletivo Feminista.
Rachel Geber Corrêa¹
Cleise Maria de Goes Martins²